Lúcia Souto Médica e militante e dirigente do PCB/PPS, foi deputada estadual de 1991 a 1998. Foi companheira de Arouca em seus últimos anos de vida. (Rio de Janeiro, 08.10.2005) Fita 1 – Lado ALúcia: Quero falar um pouco do encontro da gente. Foi um encontro num momento de vida de cada um de muita maturidade. E um amor assim muito contundente, muito transbordante. Uma afinidade gigantesca, aquela sintonia fina, onde há um entendimento muito profundo. Então de certa maneira pra mim esse convívio nosso foi uma coisa onde talvez o que mais chamava pra minha vivência desse encontro foi o prazer, a alegria, o bom humor, o tempo inteiro muito parceira e, sei lá, muito amorosa. Então esse Sérgio Arouca pra mim... Eu até brincava, chamava ele de Antônio. Porque era assim uma pessoa inteiramente despojada. Eu acho que uma das grandes qualidades pra mim do Arouca era o despojamento, a simplicidade, a despretensão. O Arouca tinha uma capacidade de ouvir as pessoas que era uma coisa assim impressionante! Era uma qualidade essa capacidade profunda, não era uma coisa superficial. Era de uma profundidade essa capacidade de ouvir! Então é por isso que eu acho que talvez ele causasse uma impressão tão forte e tenha conseguido construir (por conta dessa qualidade) uma coisa que é muito forte: onde ele entrava, ele juntava o que havia de melhor nas pessoas. Eu acho que tem gente que consegue fazer aparecer o que tem de pior em cada um. O Arouca sempre conseguiu fazer aparecer o que havia de melhor em cada um. Todos nós somos seres complexos, com problemas, dificuldades, então eu acho que essa capacidade de reunir o que há de melhor nas pessoas... Muita coisa que eu vejo da própria Fundação Oswaldo Cruz que foi um marco, eu acho que tem essa qualidade também muito forte de ter sempre... Nunca teve medo da inteligência dos outros, sempre deu chão pra todo mundo, quem quisesse criar, quem quisesse se manifestar, quem quisesse fluir, viver e se expressar estava livre pra qualquer coisa. Então era uma pessoa de uma, por ser uma pessoa libertária, livre, proporcionava isso pra quem estava junto dele. Então ele não tinha essa coisa que todo mundo tem de ficar controlando o outro, tinha uma coisa de estar proporcionando essa liberdade das pessoas estarem criando em volta dele, ele também junto, como parte. Outra coisa também que era muito sincera nele (e vivendo junto intimamente isso fica muito notável) era a humildade. Não uma humildade dessa careta, mas uma humildade de quem sabe limites, percebe que tem limites. Ele nunca se julgou um homem perfeito. Essa compreensão da sua própria humanidade, da sua própria fragilidade, era uma coisa maravilhosa, porque também fazia dele uma pessoa muito comum. Por isso que eu acho que muita gente do povão gostava dele. Uma coisa também que eu acho interessante desse caráter livre, despojado, simples e amistoso, é o fato também dele ser muito semelhante também ao Papai Noel, né? Então as crianças muitas vezes ficavam assim: “olha lá o Papai Noel!? Eu lembro uma vez que ele estava em Brasília e tinha uma porção de crianças em fila assim correndo atrás dele: “é o Papai Noel...? Aí ele fez assim: “ssssshhhhhh! Estou de férias, não fala pra ninguém? [risos]. Então essa coisa era deliciosa! Outra coisa que chamo atenção quando eu falo disso é o bom humor. Ele era bem humorado. O humor pra ele era parte da vida, sabe? A felicidade, era uma pessoa que tinha muitos prazeres nesse sentido. E eu acho que nessa dimensão toda, ele conseguiu também momentos de grande coragem (é como eu chamo). Por exemplo, quem no auge da carreira, quando ele era presidente da FIOCRUZ, larga a Presidência pra uma aventura que era ser vice-presidente de uma chapa completamente fadada a esse fracasso. Porque a gente tem uma medida de sucesso que é totalmente careta também! Então na verdade ele nunca trabalhava com essa coisa meramente de fracasso e sucesso. Pra ele era estar se desbravando caminhos. Então largar a FIOCRUZ (todo mundo perguntava como é que se sai da Presidência da FIOCUZ) e se jogar numa aventura – uma aventura entre aspas. Mas era sempre essa questão civilizatória. Essa compreensão de que estamos aqui... Não era uma coisa teórica, era uma coisa de experiência mesmo. Da mesma maneira como acumulou a Presidência da FIOCRUZ com a Secretaria Estadual de Saúde abrindo mão de um salário. Da mesma maneira como vai também pra situações completamente inesperadas, como ser secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro numa circunstância adversa, tomar posse no Conselho Municipal de Saúde pra mostrar o compromisso dele. Toda aquela aura em torno dele de ser um dos protagonistas, um dos sujeitos da construção dessa magnífica luta de reforma democrática do Estado que é a reforma sanitária brasileira. Eu acho que é também essa compreensão de que não tem República no Brasil sem povo. O Brasil sempre teve uma democracia restrita, um pacto de meia dúzia. Talvez a experiência da saúde seja a mais notável experiência de democracia com povo no seu nascimento. A chamada gestão participativa nasce com a chamada reforma sanitária brasileira. E ele foi uma das pessoas que bancou isso. Muita gente naquele período, embora fizesse parte dessa luta que era chamada “Saúde é democracia?, achava que não se devia fazer uma VIII Conferência com tanta gente – havia que dissesse isso. E ele dizia: “não, tem que ser uma multidão?. E essa multidão é que faz a diferença. Então havia também essa compreensão de estar junto de outros, essa participação ampla nunca o incomodou, ao contrário. O Arouca convivia com muita facilidade com essa complexidade, perdendo ou ganhando. Outra coisa também: ele dizia “eu tenho lado, eu não pretendo sempre ganhar!? Eu me lembro até que em algumas disputas na FIOCRUZ o pessoal dizia: “Arouca, você está acima dessa disputa, não precisa se posicionar?. Ele dizia: “não, eu tenho lado, posso me posicionar. Eu posso perder, não tem problema nenhum?. Então esse tipo de coisa dele é sensacional! Não é uma pessoa da acumulação, é uma pessoa do despojamento. Foi esse lado do Arouca que pra mim foi sempre uma coisa encantadora, transformadora. Essa coisa de mergulhar nas coisas que fazia como no tai chi chuan que a gente estava comentando. Como ele... Desde vídeo, desde literatura, desde fazer exercício durante 4, 5 horas seguidas, pra poder de fato ir ali entendendo não só a coisa da experiência corporal daquela coisa, mas também mergulhando naquela compreensão, do que era isso afinal de contas: é energia, o chi. Algumas pessoas até, quando ele falava da energia, do chi, perguntavam: “mas que piração é essa? E ele dizia: “não, o chi existe?. Também uma quebra de uma racionalidade que a cultura ocidental tem muito, e que na verdade ele vivenciou muito isso. Nada pro Arouca era uma coisa sem emoção, sem essa coisa apaixonada, sem essa coisa envolvente, sem essa coisa amorosa. Então realmente eu acho que essa coisa do amor, da paixão era uma característica muito profunda do Arouca. E na verdade eu acho que nesse momento assim da vida dele, dessa partida pra outro plano como eu digo, foi o momento da gente estar... Eu acho que fizemos ali uma dupla também muito importante de estar trabalhando a superação, e fora a energia dele também de estar enfrentando. Em nenhum momento a gente achou que aquilo era uma condenação de morte. A doença, o câncer, conversamos abertamente sobre isso, e de uma maneira também a superar, quer dizer, a esperança... Não vivemos a doença, vivemos a superação dela. Então isso eu acho que foi uma coisa marcante dessa vivência, tudo, desde essa coisa de algumas pessoas acharem: “ah, não, deixa?. Até nos últimos instantes, eu disse assim: “não, o Arouca é um guerreiro, enquanto ele estiver guerreando a gente vai ter que estar só apoiando essa luta?. Num momento já... E tudo foi muito, até esse momento dessa ida, foi um momento de muita tranqüilidade. Estávamos assim ao lado dele, eu, uma das minhas filhas, a Maria, a Nina e a Luna. E foi uma coisa tão incrível, porque era um sorriso, a respiração foi se espaçando, e não tinha um ar de sofrimento. E a gente não teve também nenhuma... Simplesmente ficamos ali juntos, juntos dele naquele instante, naquele momento. Pra mim assim falar mais do Arouca é muito difícil, tudo está presente na vida, nas coisas, eu acho hoje (não achava isso antes com essa força com a qual eu acho hoje) que tem muito mais coisa que a gente precisa aprender, abrir outros canais de percepção, outros canais de compreensão do que é essa coisa chamada vida. E eu tenho muita convicção de que tudo continua de alguma maneira, não é uma coisa abstrata, não é uma coisa assim pra se conformar, de fato existem muitas outras coisas. Pra mim isso foi um testemunho muito vivido, muito experimentado, talvez até um fator que possa ter me permitido ter ultrapassado e ter feito essa travessia, dessa perda. Acabar de alguma maneira encontrando nesse processo de vida outras possibilidades que a gente vai abrindo, vai encontrando... Regina: A sensação que eu tenho, Lúcia, a impressão que a gente teve conversando lá com o pessoal do tai chi, é de que como ele sempre estivesse vivenciando esse processo que o professor Estevão e a professora Denise, que o tai chi é um processo, é um “aqui e agora?, tem uma utopia lá longe que você está sempre alimentando, mas você não tem aquilo: “tenho que chegar de qualquer maneira! Por cima de tudo?. Quer dizer, viver o processo em toda a sua intensidade. Lúcia: É, eu acho que é isso mesmo. Até eu acho que essa própria experiência do Arouca com o tai chi deu a ele um outro instrumental praquele momento, onde ele estava mais fragilizado, mais vulnerável. E uma capacidade também não só de estar batalhando pra superar aquele momento, mas também de estar muito amoroso naquele momento, o tempo inteiro era uma coisa de dizer a todo mundo “te amo?. E essa coisa que você fala do processo, de fato, tudo na vida é um processo, é um processo aqui e agora, como é que a gente vai construir esses encontros, sei lá, pra mim toda essa experiência de convívio, eu sempre achei que o amor é uma força assim, eu até dizia muito antes que pra mim o amor é a questão política do século XXI, política mesmo. Essa coisa de você estar superando uma lógica do “cada um por si e salve-se quem puder?, pra estar construindo um mínimo de vínculos mútuos, um mínimo de reciprocidade, isso exige muita maioridade, muita compreensão do papel, da presença do outro na sua vida. Então essas questões que vão do microcosmo ao macrocosmo são também muito construídas, é uma construção no dia-a-dia. Então essa experiência nossa amorosa, essa nossa experiência de convívio, de estar junto, batalhando, foi também uma experiência que acrescentou muito! Acrescentou muito, e eu acho que o testemunho é a própria vida da gente, é a maneira de estar podendo fazer as coisas com muita simplicidade, porque pra mim isso também é uma característica que talvez tenha permitido essa reunião, essa compreensão de que as coisas têm que ser muito simples, muito despojadas. É uma arte essa simplicidade, mas ela é absolutamente essencial. A simplicidade é uma coisa vital! E eu acho que essa coisa também juntou muito a gente, essa capacidade de estar identificando, e às vezes tem que ficar assim perdendo, ganhando, vivendo. Até romper com esses incontinentes, que a gente está tão amarrada a eles às vezes. Regina: Ele tinha uma grande capacidade agregadora, era uma pessoa que agregava, que juntava. Você estava falando dele às vezes juntar forças diferentes. Nas entrevistas que eu fiz na FIOCRUZ, as pessoas disseram que ele tinha a capacidade de pegar pessoas opostas, como você está dizendo, aproveitar o melhor de cada uma pra conseguir fazer um trabalho coletivo. É muito difícil, não é? O coletivo. Lúcia: É. Isso eu acho uma coisa inequívoca. Tanto que eu acho que o método, alguma maneira, mesmo que não seja o método, mas uma maneira de você se colocar, eu acho que essa coisa agregadora era uma coisa notável, de estar juntando, estar trabalhando intuitivamente essa complexidade toda. Era uma coisa libertária, despojada, simples e muito corajosa. O Arouca era um homem extremamente corajoso! Corajoso naquela coisa do dia-a-dia, naquela coisa mínima. Nunca se burocratizou, o Arouca não conseguia se burocratizar. Nunca foi um burocrata, entendeu? Ele sempre foi um homem da vida, do mundo, um homem libertário, que estava disposto o tempo inteiro a correr riscos, a entrar em desafios, sem se preocupar se ia perder ou ganhar. Isso é que eu também acho uma característica extraordinária. Não estava em jogo isso, não era isso que importava, era o processo dentro dessa coisa, era realmente estar lidando e se entregando a essa coisa, de uma maneira simples, sem idealização. Essa coisa eu acho também (repetindo) que era muito forte no Arouca: não se achar um super-homem (uma pessoa simples), e era uma pessoa que sabia de suas limitações, da sua humanidade, nunca virou um personagem. Porque tem gente que às vezes assume um determinado tipo de responsabilidade e acaba virando um outro ser, um personagem. Ele não. Do jeito que ele estava em qualquer lugar ele ficava o tempo inteiro com aquela... Não tinha uma persona, não tinha uma outra cara. E isso talvez fosse uma coisa amável dele, não é? Regina: Lúcia, o que significava pra ele política? Lúcia: Política era parte integrante da vida dele – no sentido amplíssimo da palavra. Política enquanto transformação civilizatória, enquanto engajamento público. Eu estava ouvindo o Estevão falar da arma preferida dele no tai chi (que era o sabre, a arma do povo), era inerente à vida dele, ao caráter dele estar envolvido, ele não se omitia. Quando eu digo que o pessoal falava “você está transcendendo isso, não precisa se posicionar?, ele dizia “não, eu tenho lado, tenho posição?. E isso, por exemplo, se revelou muito na campanha última do Lula. O PPS, ele, eu também era do PPS (ambos fomos parlamentares por 8 anos do PPS no Rio de Janeiro, eu estadual). Mas dentro do próprio Partido Popular Socialista ele foi uma das lideranças pelo apoio ao Lula. Essa coisa pra ele era muito clara, a importância desse posicionamento, ele adorava o Lula! Dizia: “eu gosto do Lula, acho o Lula simpático, olha a cara dele!? Então com essa coisa dele, eu tenho certeza que ele continuaria Lula, porque eu acho que ele tinha essa consciência de que é muito complexa, e a própria experiência da reforma sanitária que eu acho que ela foi uma coisa que antecipou na área da saúde... Que a saúde o que é? É a grande política distributiva, de distribuição de renda. Então trabalhar naquela transição da ditadura pra Nova República todo um arcabouço conceitual da saúde numa ampla participação consagrando a saúde como direito na Constituição, era estar trabalhando a idéia de que a saúde é não só um direito político, mas econômico e social. Essa visão dessa distribuição de renda nessas políticas sociais, principalmente nessa do direito ao acesso à saúde numa forma inovadora – até como ele queria botar na cidade do Rio de Janeiro, 600 equipes de saúde da família, sair do paradigma “hospitalocêntrico? pra uma coisa que podia ser a transformação da saúde. Eu estou ligando isso com essa experiência republicana que nós estamos vivendo com esse sistema de alianças do governo Lula, de centro-esquerda, onde sempre se observou que era importante ter um sistema de alianças pra dar sustentação a essa transformação das políticas sociais no Brasil. Então de alguma maneira eu vejo que o entusiasmo dele no primeiro ano do governo Lula. O Arouca na transição – no primeiro turno apoiamos o Ciro e no segundo turno ele se envolveu já na comissão de todos os partidos de apoio ao Lula, mas com tanta força... Isso foram os últimos momentos, a questão da política na vida dele era vital, era o oxigênio que ele respirava, então ele se jogou de corpo e alma na transição do governo Lula, depois para que fosse antecipada a XII Conferência Nacional de Saúde. Inclusive essa proposta foi acatada por todos os partidos da coalizão do Lula. E de fato no primeiro ano do governo foi feita a XII Conferência que ele coordenou. Só pra você ver, coordenou no início, e já foi o ano onde ele acabou partindo. Mas ele se envolveu tanto com aquilo... Eu me lembro até que teve uma coisa engraçada, que todo mundo dizia: “mas como é que vai ser o Conselho Nacional de Saúde? Ele já secretário de Gestão Participativa e à frente da organização da XII Conferência, e o pessoal dizia: “não, mas vai ser um conflito no Conselho, porque todo mundo vai querer participar da comissão organizadora?. E ele disse assim: “qual é o problema? Todo mundo participa. “Todo o Conselho participa, não vai ter briga por causa disso.? Quer dizer, tudo nele era includente. Ele nunca achou que era problema ter bastante gente participando. Ao contrário! Isso fazia com que aquele processo ganhasse alma, corpo, espiritualidade. Era esse o Arouca. Então nesse primeiro ano do governo Lula ele também se comportou assim. Ele era um apaixonado, e assim ele se entregou, o tempo inteiro ele ficou envolvido com isso. Só quando ele não pode mais, realmente era uma impossibilidade física completa, é que ele não se engajou mais, mas aí a sua alma, seu espírito estavam presentes nesse processo. Eu tenho certeza que (e como ele está aqui conosco) ele estaria com muita felicidade apoiando o governo Lula. Isso realmente foi uma coisa de empenho pessoal dele, uma coisa absolutamente convicta, e eu acho que a construção nossa da sociedade brasileira sempre foi uma (mais uma atitude que uma preocupação) atitude do Arouca. O Arouca sempre foi um cara de estar envolvido com as coisas que podiam estar ajudando a transformar a realidade que a gente está vivendo. [pausa na gravação] Regina: O Noilton agora se empolgou porque ele anda nervoso com esse momento que a gente está vivendo... Lúcia: Ah, eu sou Lula doente! Regina: Essa fritação do Lula... Lúcia: Isso é um absurdo!!! Regina: Eu acho que você estava tocando nesse ponto, dizendo que o Arouca era uma pessoa que tinha consciência dessa complexidade e do que representa para o país e para a democracia brasileira. Lúcia: Eu acho que fazendo essa percepção da importância da política na vida do Arouca, ele também sempre compreendeu muito essa trama complexa e como é que você pode estar construindo um sistema de alianças que dê base a uma agenda de transformações no Brasil. O Brasil é uma das economias mais concentradas do planeta. Na verdade, esse apoio nosso, e dele principalmente, apaixonado, entusiasmado, não era só um apoio tático, era uma compreensão muito grande do valor pra história deste país desse sistema de alianças que fez o Lula chegar a presidente da República. Uma construção da sociedade brasileira que a gente tem que cultivar de uma forma extraordinária! Não é todo país que tem a honra de ter um presidente com a história e a biografia do Lula! Na verdade, essa compreensão profunda do que isso significou fez também com que o Arouca passasse dificuldades físicas. Já tinha feito a cirurgia no primeiro ano do governo do Lula, e na verdade ele se engajou naquele governo, o que pra ele era quase dizer o seguinte: “esse é o meu testemunho de vida, não posso deixar em branco este momento da vida política do nosso país?. E não deixou! Se entregou de corpo e alma à construção desse processo de aprofundar a democracia. Tanto que coube a ele, de maneira simbólica e real, a criação dentro da República brasileira e dentro do Ministério da Saúde que era a Secretaria de Gestão Participativa. Ele foi o primeiro secretário, ele é uma inspiração também dessa compreensão que ele tinha de que sem povo, sem participação popular, não se constrói democracia nesse Brasil! O pacto das elites no Brasil sempre foi um pacto fechado, de meia dúzia de pessoas. Quer dizer, esse pacto, essa democracia sem povo... E toda vez que se tentou fazer uma democracia com povo a elite desestabilizou esse processo. Foi assim com Juscelino, com Jango... Todas as incipientes experiências republicanas do Brasil foram... O Juscelino era chamado de cafajeste! Presidente ladrão! Era assim que se referiam a Juscelino Kubitscheck. O Jango conseguiram derrubar! Fazer uma ditadura de anos... Que preço essa ditadura teve pra esse país! Então quando você sai da transição pra Nova República (onde até coincidentemente a saúde teve uma presença importante), agora qual é o desafio (que pra ele também na saúde sincronicamente havia o desafio de fazer o novo ciclo do SUS no Brasil, um ciclo radicalmente democrático)? Esse ciclo também é o novo ciclo da democracia brasileira! A combinação entre democracia direta e democracia representativa, a permeabilidade fascinante do governo Lula aos movimentos sociais, que ele é a expressão mais genuína desses movimentos sociais do Brasil. Essa incipiente construção é ouro em pó pra esse país! Talvez a gente esteja desafiado enquanto civilização, enquanto pessoas que também precisamos crescer, não podemos ficar o tempo inteiro nos queixando! Aceitar a nossa maioridade civilizatória e se engajar também nesse processo do dia-a-dia pra mudar métodos, mudar relações, construir um novo país que não é só o Lula! O Lula é uma expressão extraordinária disso! Uma pessoa do diálogo, uma pessoa de fazer tudo aquilo que... A minha irmã até comenta muito que o Gilberto Freyre sempre foi um dos grandes inspiradores dessa coisa do diálogo, dessa coisa da conciliação. O Lula é a definição mais fantástica do conciliador que trás pra dentro da democracia o povo! Então eu acho que esse processo que nós estamos vivendo, com o qual o Arouca contribuiu até onde pôde pra essa construção, eu acho que é um desafio hoje pra todos nós extraordinário! Estamos assim... Eu particularmente acho que o governo Lula, e tenho certeza que o Arouca estaria também hoje, porque a afinidade dele, a compreensão da beleza e da importância desse processo político no Brasil era completa, definitiva! E isso ele mostrou com a garra e o empenho que ele deu a esse primeiro ano do governo Lula. Regina: Ótimo esse depoimento! Eu queria fazer uma pergunta pra você, que você participou dessa passagem do PCB pro PPS, e esse é processo que eu queria entender melhor... (...) Eu queria entender assim a posição do Arouca de sair do PCB e... Lúcia: Não é sair do PCB. Essa história inclusive eu vivi intensamente porque eu era parlamentar, deputada estadual pelo Rio de Janeiro, e a gente compartilhou esse processo. Na verdade, eu acho que várias organizações, várias comunidades políticas do Brasil estão construindo esse campo da chamada centro-esquerda, tendo alguns compromissos e valores de uma sociedade que possa encontrar na política (no amplo sentido dessa palavra) um caminho. Então o PCB na época, era a época da queda do Muro de Berlim, enfim, uma série de esgotamentos da experiência do chamado “socialismo real? e que na verdade se refletiu em várias comunidades políticas, em vários partidos comunistas do mundo inteiro. O PCB na época sempre foi um partido (junto com o Partido Comunista Espanhol, junto com o Partido Comunista Italiano) a favor de mudanças, de transformações, mesmo bem antes, na época do Kruschev, bem anterior. Então quando houve esse desmanche digamos assim, houve também essa discussão muito profunda dentro do PCB. E na verdade não era só uma mudança de rótulo, era uma mudança de conteúdos, era uma mudança de política, democracia como valor universal, estratégico, não como um valor superficial, que você usa e depois joga fora (como foi a história da ditadura do proletariado). É a compreensão de que a democracia é um valor estratégico e um valor universal! Essa discussão que permeou toda a transformação do PCB para Partido Popular Socialista inclusive teve um momento síntese que foi no Teatro Aurora em São Paulo [na realidade Teatro Zácaro], foi um dos momentos mais expressivos que eu já vivi, e o Arouca foi muito atuante nesse processo, que foi o momento onde as pessoas que queriam ficar com a legenda do PCB, no final, quando já eram três dias de congresso nesse Teatro Aurora [Zácaro], as pessoas que ficaram com a sigla do PCB se retiraram, porque não concordavam com a mudança. Era um grupo minoritário, e eles saíram do Teatro, e ficou aquele vazio. Eu nunca vi uma coisa tão respeitosa, porque não havia aplauso, também não havia vaia, não havia nada disso – simplesmente um vazio. Um silêncio que dava pra você ouvir qualquer barulhinho naquele imenso auditório tamanha era a importância e a dor daquele momento. Então essa transformação do PCB pra PPS foi uma transformação eminentemente política, de valores, de conteúdos. E na verdade a gente teve uma participação grande. Há nessa nova fase, eu acho que há uma grande discussão que não é uma discussão do PPS, é uma discussão de todos. (...) Mas na verdade essa questão do PCB / PPS coloca também uma discussão desse chamado pragmatismo eleitoral. Grandes pensadores do mundo inteiro, seja Noam Chomski, seja um autor polonês que eu estou me dedicando bastante a ler nesse momento, é uma série de contribuições que mostram como o poder econômico, o poder das corporações invadiu o chamado espaço público e transformou muito, é quase que o colapso do espaço público, da política. Então eu acho que a gente esteja vivendo um momento que exija de cada um de nós essa compreensão de renascimento do espaço público. Como é que nós vamos falar coisas em comum a todos nós, criar uma agenda comum de país, criar algo que possa estar... É claro, cada um tem seus interesses, mas não é só um exibicionismo de programas individuais, a gente não precisa disso. A gente precisa é de uma agenda transformadora, comum desse país. Então de certa maneira, eu acho que vários operadores políticos, vários partidos vêm de alguma maneira carecendo dessa transformação. O momento peculiar que o Brasil viver hoje de emergência (de possibilidade antes que emergência) de redes que antes eram ocultas, invisíveis, opacas ao conhecimento público, isso é muito importante! Você ver uma Daslu, que antes fica aquele mimo: “não, que a elite pode fraudar, a elite pode sonegar, isso aí tudo bem!? Mas quando você começa a ter uma ação mais democrática, mais universal, você também, sem querer... A dona da Capricciosa, daqueles restaurantes aqui do Rio de Janeiro, tudo isso vai sendo algo que vai provocar transformações, porque nada disso é inútil, digamos assim. Eu acho que nós estamos vivendo o momento de recuperar a possibilidade (isso não é um determinismo histórico) de estar colocando a questão do público, do espaço público, da política enquanto uma articuladora e organizadora dos interessas comuns de uma sociedade, pra que a gente possa estar transformando essa sociedade. Enfrentar o conflito da distribuição de renda, enfrentar a igualdade – não essa igualdade amorfa, mas a oportunidade realmente distribuída. Enfim, radicalizando essa questão da democracia, porque outro grande desafio é que a democracia resolveu várias coisas, a liberdade, não sei que, mas nós não podemos nos conformar com a liberdade que temos de que isso que está aí é para sempre, entendeu? E a nossa liberdade, como é que a gente vai utilizar essa liberdade que a democracia nos proporciona pra transformar isso que é a realidade que nós vivemos? Até Lula no outro dia num depoimento ou numa manifestação que ele foi disse que a democracia já resolveu vários problemas da humanidade, mas ainda não conseguiu resolver o problema da pobreza. Isso é um fato! Quando é que a gente vai ter que dar tratos a essa questão, a esse fato político, e realmente fazer com que esse segundo momento, porque eu votarei no Lula, e acho que a gente tem que construir essa nova sociedade, mas como é que a gente vai fazer com que esse sistema de alianças... Porque também sem alianças ele nem teria chegado ao poder, isso é concreto, até porque não só é uma ingenuidade, mas eu acho até pior: é uma farsa. É uma farsa imaginar que numa sociedade complexa como essa você pode retirar da realidade uma parte dela. Não pode, a realidade é isso! Nós temos que nos inundar de realidade e em cima desse inundamento de realidade a gente fazer essa transformação que cabe a cada um de nós. Uma coisa que eu acho vital hoje é essa maioridade civilizatória: eu acho que nós temos que crescer. Crescer como ser humano, crescer como indivíduos, crescer como comunidade, pra poder de fato à altura dos desafios que estão diante de nós. Regina: Quer dizer, quando você fala assim desse esgotamento partidário é mais que simplesmente não se identificar mais com um partido. Tem uma questão mais complexa aí. Lúcia: Eu acho que tem, e é a questão da política. Essa coisa desse pragmatismo de alguma maneira ter feito, por exemplo, as eleições muito produto de mídia. Mas na verdade isso é uma parte da questão, porque sem dúvida nenhuma você tem uma densidade política dos protagonistas desse processo. Ninguém vai negar a densidade política sintetizada numa figura como a do Lula, é óbvio que existe! Ele não é uma invenção, ele não é uma coisa artificial, é uma realidade oriunda do que há de melhor na sociedade brasileira! Então se tem de um lado essa crise, do outro também tem um fato concreto de que tem partidos políticos que tem força ligada a essa realidade de movimentações, que tem energia transformadora. O que eu acho é o seguinte: não dá pra não ter lado. Eu acho que a gente tem que ter lado, tem que ter parte nesse processo, até porque seria de uma onipotência completa cada um imaginar: “ah, não, é um todo?. Não! Eu sou uma parte desse processo, vou contribuir com essa parte com a qual eu estou me envolvendo nesse processo. Agora o que eu acho fundamental é essa crise dos mecanismos políticos, tem um pragmatismo, tem algo que é você fazer com que essas corporações, a questão financeira... A coisa do capitalismo! A corrupção é uma forma de acumulação do capitalismo, isso é uma realidade concreta também. Então de certa maneira você se desvencilhar dessa trama, dessa rede, desses métodos não é uma coisa simplória e nem do dia pra noite! E imaginar que o governo vai ser bode expiatório dessa história é de uma perversidade que é fazer todo mundo desse país de idiota! Sobretudo é não acreditar na capacidade de discernimento da população brasileira! Não é à toa que com todo esse massacre, há uma manutenção do Lula pelo povo, o Lula está blindado é pelo povo brasileiro! Quem blindou o Lula foi o povo brasileiro, porque sabe da importância que é ter algo que ele representa. Não estou nem colocando ele isoladamente, mas o que ele representa enquanto potência – talvez até a potência nietzschiniana, essa potência transformadora de uma sociedade. Ele tem, ele carrega nele. Um cara que vem de Garanhuns, lá do quinto dos infernos, pra São Paulo, naquela miséria desgraçada, virar presidente da República, não é pra ser endeusado, mas é pra ser compreendida a importância e até essa coisa extraordinária que é esse leque de alianças e de conseguir administrar essa complexidade – isso é uma coisa extraordinária! Sem perder os elos com aquilo mais fundamental que é o compromisso popular. Quer dizer, no governo dele foi onde a chamada pequena agricultura, a agricultura familiar (não os sem-terra, mas a agricultura familiar), mudou as linhas de crédito que antes eram 80% pro latifúndio, mudaram para o pequeno produtor! A gente vai ver reflexos disso daqui a 10 anos! Eu que viajei pelo Ministério fazendo o trabalho da saúde em várias localidades do interior, são emocionantes os depoimentos! De pessoas que dizem assim: “isso é concreto, é fato concreto!? Hoje você tem sem burocracia, sem nada, crédito pra pequena agricultura, pra cooperativas. Outra coisa que eu não sabia, fiquei sabendo nessas minhas viagens, que, por exemplo, você tem grandes grupos de pequenos agricultores que são essa exportação do Brasil tão saudada por todos, grande parte dessa exportação é dos pequenos agricultores! Fruto também já dessa modalidade de mudança de incentivo. A democratização do campo no fundo é isso. Quer dizer, há uma série de medidas que você já sente que nunca houve um momento da sociedade brasileira com tanta permeabilidade à sociedade. Então são vários fatos que vão construindo, porque na verdade tudo é uma grande construção social, estamos num presente desafiador, o que vai ser vai depender de cada um. Regina: Você acha que o Sérgio Arouca manteve a utopia socialista??????? Lúcia: Eu acho que ele manteve, com certeza, e esse depoimento, esse engajamento dele... O primeiro ano do governo Lula já se dá num momento em que ele não estava, que tinha que botar o colete porque tinha uma dor aqui, mas ele usava aquilo com uma altivez, com uma garra, com uma energia de quem sabia profundamente com quem... Tinha uma vontade enorme de estar contribuindo pra isso, quer dizer, quem tem essa vontade enorme de estar se engajando, de estar contribuindo pra isso não tá desanimado e nem distanciado de utopias, digamos assim. É aquela coisa: estou transformando no presente, a minha atitude aqui e agora vai fazer diferença! Não interessa se eu já modifiquei, se o resultado foi esse ou aquele. Interessa que eu não abri mão da minha contribuição. Isso ele fez com muita paixão mesmo, era um apaixonado por esse processo. E assim foi até o final acreditando, participando, dando os seus pitacos de como é que seria a XII Conferência, que com toda a justiça acabou se chamando XII Conferência Nacional de Saúde Sérgio Arouca. Regina: E você acha assim que se ele estivesse aqui agora, qual seria a fala dele assim pras novas gerações, o legado, nesse mundo que a gente está vivendo hoje? Lúcia: Eu acho que eu nem preciso dizer qual seria a fala porque ele já disse. Com seus gestos, com sua atitude, com a sua vida e com a sua prática. Ele era uma pessoa assim com uma jovialidade e com um engajamento. Ele nunca deixou de estar atuando, e inclusive com uma alegria grande. O Arouca não era uma pessoa de uma dimensão só: ele fazia isso de uma maneira íntegra, leve – aliás, é uma outra característica dele, ele tinha uma leveza muito grande. Então eu acho que essa leveza, esse compromisso, pras novas gerações ele deixou até o último instante, porque ele foi atuante, se envolvendo, participando e acreditando na vida, no amor, na maneira como você está trabalhando, eu acho que ele deixou um testemunho de ação, de engajamento e de envolvimento com as coisas... As coisas não estavam distantes dele, ele se sentia parte do problema, parte da solução e integrando esse processo com outros de transformação da civilização, porque ele também sempre teve essa compreensão civilizatória, então isso de certa maneira já o liga às gerações futuras – presentes e futuras. A compreensão de que estamos aqui num processo civilizatório sempre foi uma coisa... Tanto que ele dizia que a reforma sanitária não é uma coisa técnico-burocrática, é uma questão civilizatória, não é uma coisa administrativa e técnico-burocrática. Então de certa maneira em vários momentos de atividade, de vida, de expressão, ele já mostrou esse tipo de compreensão e de vitalidade. Ele era membro de uma corrente, não era um ser isolado. Ele era parte de um processo, de uma civilização – e eu acho que era assim que ele se sentia muito bem, como sanitarista (era até o que ele dizia). É isso. Fala de Lúcia Souto durante a entrega do “Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa no Sistema Único de Saúde?, em 19.10.2005 em Brasília (DF) (...) No instante da eleição do Governo Lula, o Arouca fazendo parte do apoio ao Governo Lula, de uma forma muito contundente mergulhou naquele processo e sugeriu àquela frente de partidos que apoiasse a XII Conferência no primeiro ano do Governo Lula. Ele sabia que o Governo Lula seria a retomada do espírito da reforma sanitária brasileira, como está sendo aqui. E na verdade eu acho que esse testemunho de como ele até na vulnerabilidade, na fragilidade, na adversidade do seu problema de saúde, mergulhou durante todo o primeiro ano do Governo Lula para a construção dessa Secretaria de Gestão Participativa, apostando que a República no Brasil é importantíssima essa nova relação Estado/sociedade balizada pelos direitos, para ele isso era uma coisa da alma, do espírito, do corpo, nunca foi uma coisa burocrática. Então na verdade esse testemunho desse envolvimento profundo, essa crença profunda de que nós vamos poder, enquanto civilização, construir uma República verdadeira nesse país. E na verdade a saúde ajudou muito esse sentimento de reforma democrática do Estado, essa construção republicana que tanto... E por isso esse prêmio é atual, e mais do que nunca o Arouca é contemporâneo, atual e instigador dessas experiências que vão fundar esse novo momento, esse novo país, e esse entusiasmo que eu testemunhei o tempo inteiro com esse sistema de alianças do governo do Lula. |
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