O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)

?por Carlos Augusto Ferreira Figueira
Graduando em História pela UNIRIO e Bolsista de Iniciação Científica

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Quando da realização, em Brasília, da 28ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em junho de 1976, notou-se que a sociedade contava ainda com poucos canais para manifestar-se contrariamente ao regime autoritário até então em vigor. As conseqüências e as causas políticas do “milagre? já eram tão patentes no ambiente universitário que levaram a transformação desse fórum científico em fórum político. As reuniões da SBPC passaram a congregar um número cada vez maior de pessoas exigindo a redemocratização do País.

Em 1976, todas as energias da oposição liberal ao regime concentraram-se num dado momento na reunião anual da SBPC. Ali, em clima de grande tensão, à sombra do próprio Palácio, a comunidade acadêmica, no seu sentido mais amplo e convencional, repudia os valores do estado autoritário e pede o retorno aos quadros universitários, dos professores expurgados pelo regime.[1]

Por essas reuniões anuais da SBPC terem se tornado um novo espaço para o debate político contra o autoritarismo, a reunião de Brasília atraiu um grupo de pessoas ligadas aos departamentos de medicina preventiva e social do Rio de Janeiro e de São Paulo. Entre outras temáticas, discutiu-se a formação de uma entidade aglutinadora do novo pensamento em saúde, à semelhança das demais associações e sociedades da SBPC.

Grande parte dos componentes desse grupo tinha passado pelo departamento de medicina preventiva da Unicamp, que até 1975 constituíra um centro de atração nacional de pessoas com passado de trabalho político na área da saúde. Ali se iniciara a análise do processo saúde/doença pelo ponto de vista do materialismo histórico. Após o conflito entre esse departamento e a reitoria da Unicamp, o grupo se fragmentou: uma parte foi para São Paulo, para o mestrado no departamento de medicina preventiva da Universidade de São Paulo (USP) ou para a Secretaria de Estado de Saúde (SES), particularmente para o projeto da Zona Leste; outra parte foi para o Rio de Janeiro, onde daria início ao desenvolvimento do Programa de Estudos Sócio-Econômicos em Saúde (Peses), da Finep/Fiocruz.

Àquela altura, os grupos que pensavam a saúde coletiva em diferentes núcleos de pesquisa espalhados por todo o Brasil viram o quanto seria importante a criação de uma instituição que pudesse vir a organizar dos debates nacionais que ocorriam sobre o setor saúde e, além disso, que fosse a voz desse crescente grupo através de um veículo de comunicação que pudesse ser acessível não só aos médicos de carreira, pesquisadores e residentes, mas sim, que pudesse servir de elemento de coesão entre todas as frentes populares que lutavam pela redemocratização do país.

?Assim, em 4 de novembro de 1976, é lançado o primeiro exemplar do veículo de comunicação do Cebes, a revista Saúde em Debate, com o objetivo de ampliar e levar adiante as discussões e a análise do setor saúde como componente do processo histórico-social, no sentido de reafirmar a íntima relação existente entre saúde e a estrutura social. Segundo a autora Sarah Escorel, a criação do Cebes é a pedra fundamental na organização de um movimento social: o movimento sanitário de origem preventivista.? Como patrono da instituição, foi escolhido o professor Samuel Pessoa, falecido naquele ano, que foi um dos pesquisadores expurgados pelo regime e a quem foi dedicado o primeiro exemplar da revista.

??????????? Na verdade, segundo Arouca, “nascia Saúde em Debate, não o Cebes. O Cebes aparece inicialmente como forma de permitir que a revista seja lançada. Para fazer e divulgar uma revista que pudesse ser veículo de todo esse pensamento crítico na área da saúde era necessário ter uma instituição que a viabilizasse?.[2]

???????????? O Cebes não só publicava a revista. Além disso, promovia encontros, mesas-redondas, debates e reuniões nas quais se discutiam diferentes aspectos do setor saúde.

?Arouca (1986) define o Cebes como “um centro de estudos que organiza debates sobre planejamento familiar, Previdência Social, medicamentos. Começa a transformar figuras do pensamento crítico na área da saúde - como Gentile de Mello e Mário Vítor de Assis Pacheco - em nacionais a partir da divulgação desse trabalho. E, começa a se transformar efetivamente num centro de estudos.[3]

Em meados de 1977, o Cebes viveu sua primeira “crise?. No editorial do terceiro número de Saúde em Debate, apontava-se a existência de duas concepções de atuação. A primeira, afirma o Cebes enquanto aglutinador das tendências renovadoras do setor saúde, em nível profissional, com o objetivo de coordenar esforços para desenvolver políticas de saúde mais adequadas à realidade brasileira. A segunda concepção, sem subestimar o trabalho nas entidades de profissionais de saúde, quer desenvolver atividades voltadas mais diretamente à comunidade através de suas várias organizações.

Se for verdade que o Cebes já podia ser visto como um grande grupo de opinião, a evolução dos fatos evidenciou que as duas concepções não chegaram a se harmonizar. De maneira geral, mas principalmente na região Sudeste, os núcleos do Cebes dedicaram mais atenção ao trabalho com os profissionais - e, posteriormente, com as instituições - do que às atividades diretamente voltadas para a comunidade, através de suas organizações.

Nesse mesmo editorial, começa a se vislumbrar o princípio básico daquele grupo: democratização do setor saúde que deve ter como marco a unificação dos serviços de saúde, públicos e sem fins lucrativos, com a participação dos usuários estimulada. No entanto, esse princípio tornar-se-ia um projeto em repouso, ansioso pelo momento certo de sua execução. Era necessário, primeiramente, modificar o contexto político brasileiro da época que exigia a máxima concentração de esforços em prol da luta pela redemocratização do País. A Reforma Sanitária ainda esperaria por mais alguns anos.

?O Cebes, que inicialmente tinha como lema a luta pela Reforma Sanitária, pela unificação do sistema de saúde e pela democracia, acabou por se concentrar “durante aquele período na luta que era a luta fundamental: a luta pela derrubada da ditadura. Então Saúde e Democracia passa a ser o grande lema do Cebes por um longo período? (Arouca, 1986).[4]

Já em fins de 1977, o Cebes passava a satisfazer duas grandes necessidades da esquerda da saúde: de um lado, a criação de um local, não institucional e não acadêmico, que servisse de palco para as discussões onde pudessem ser apresentadas as suas propostas políticas e seus projetos alternativos para o setor saúde; por outro lado, existia a necessidade de um local para a reunião das oposições sindicais.

A partir de 1978, os “altos escalões intelectuais? do Cebes formaram o Projeto Andrômeda. Em suas reuniões, definiam estratégias de atuação e de consolidação nos espaços institucionais. Nenhum projeto veio a ser formulado, embora tenha havido concordância quanto a algumas estratégias a serem adotadas. No mesmo ano, veio, a convite da mesma instituição, um dos ícones da saúde pública no mundo: Giovanni Berlinguer[5]. O patrocínio do Cebes[6] a vinda deste pesquisador ao Brasil é, sem dúvida, uma ousadia política naquela conjuntura nacional. Em suas palestras por todo o País, o pesquisador procurou esclarecer as estratégias e os obstáculos vividos por seu grupo na Itália. É a partir dos esclarecimentos de Berlinguer que, segundo Sarah Escorel, os pesquisadores do Cebes passam a utilizar-se do conceito de Reforma Sanitária. Além das palestras, conferências e mesas-redondas organizadas, o Cebes também investiu na publicação de livros dos grandes autores que discutiram a questão social e a prática médica por todo o mundo. Entre eles, autores do estruturalismo francês como Boltansky, Bourdieu, Michel Foucault, Canguilhem; da América Latina, como Juan César Garcia; e da Itália, entre eles, pesquisadores ligados ao Partido Comunista Italiano como Basaglia, Laura Conti e, seu maior ícone, Giovanni Berlinguer.

Em 1979, o núcleo do Cebes em Brasília destacou-se por sua atuação parlamentar. Em virtude de sua localização, especializou-se nesse espaço e fortaleceu-se quando uma série de quadros técnicos se deslocaram para o Distrito Federal para trabalhar no Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), no Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (PPREPS) e, a partir de 1979, nos ministérios. Assessorou parlamentares progressistas da Comissão de Saúde, que se revitalizou, iniciando uma fase mais combativa e presente no cenário nacional. O resultado foi o I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, organizado pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados. O grupo de trabalho do Cebes veio a apresentar o documento “A Questão Democrática na ?rea da Saúde? que acabou sendo por todos os demais grupos de trabalho como oficial e fechou primorosamente o relatório final.

Segundo a autora Sarah Escorel, é possível dividir a prática de atuação do Cebes em quatro vertentes principais:

1. Outubro de 1976 a junho de 1977: criação. Formação dos núcleos do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Belo Horizonte. Lançamento da revista Saúde e, Debate. “Período de passos entusiásticos, mas de grandes incertezas administrativas e financeiras?. Início da expansão de sócios e assinantes. Comunicação com aproximadamente 20 núcleos em todo o Brasil. Período de grande produção intelectual; publicação da revista e de vários livros, realização de eventos para discussão do setor saúde. Organização do fórum de discussão da saúde na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) a partir de 1977. Integração do pensamento acadêmico com as reivindicações da sociedade brasileira em geral. Constituição propriamente de um centro de estudos;

2. Junho de 1977 a fins de 1978: expansão das atividades como um centro de estudos. Grande desenvolvimento na luta pela democracia, particularmente na luta sindical e pela renovação das entidades. Participação no Projeto Andrômeda. Patrocínio de visita e conferências de autores estrangeiros, em particular a primeira visita de Giovanni Berlinguer;

3. 1º semestre de 1979: desestruturação oriunda do suposto esgotamento do espaço próprio de atuação do Cebes. Início da discussão que orientará o trabalho mais ligado à política da Saúde. Fortalecimento do núcleo de Brasília, que iniciou a assessoria à Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados;

4. 2º semestre de 1979: início de uma nova fase do Cebes e do movimento sanitário como um todo. Apresentação do documento “A Questão Democrática na ?rea da Saúde? no 1º Simpósio sobre Política de Saúde.[7]

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[1] ESCOREL, Sarah. Reviravolta na Saúde: Origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. p. 75.

[2] Ibid., p. 76.

[3] Ibid., p. 77.

[4] Ibid., p. 79.

[5] Giovanni Berlinguer era deputado do Partido Comunista Italiano (PCI), irmão do então Secretário-Geral do PCI e renomado professor de Medicina do Trabalho na Universidade de Roma e de Medicina Social na Universidade de Sassari com vários livros publicados enfim, uma personalidade respeitada. Segundo Sarah Escorel, pela primeira vez durante a ditadura, um parlamentar comunista entrou no País e falou livremente, sem qualquer problema com a polícia política. ESCOREL, Sarah. Reviravolta na Saúde: Origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. p. 82.

[6] À época o Centro de Estudos de Saúde (Cebes) era uma instituição que, por não contar com financiamento público, vivia apenas das mensalidades pagas por seus associados. Daí a falta de periodicidade de sua publicação Saúde em Debate.

[7] Ibid., pp. 85-6.



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